MESTRE
HUGO SAI DE CENA
Hugo Zorzetti |
Meu primeiro contato com Hugo Zorzetti aconteceu numa longa
entrevista concedida por ele ao jornal O Popular, na época da criação da Escola
de Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, da qual foi idealizador e
fundador no ano 2000. Já tinha assistido peças do seu Grupo Exercício e conhecia sua
capacidade intelectual. Tivemos outros encontros para falar de teatro, do lançamento
de seus livros e de assuntos relacionados ao fazer teatral, meandros que
conhecia como poucos. Confesso que fiquei surpresa ao conhecer uma pessoa com
tanta sabedoria, clareza de raciocínio e com todas as informações que buscava.
Professor de Língua Portuguesa, Hugo Zorzetti migrou para as
aulas de teatro com naturalidade. Fazia teatro desde a adolescência, portanto
sentia-se seguro na nova profissão que abraçava. Em mais de 50 anos, construiu
uma carreira respeitada dentro e fora de Goiás. Morto aos 69 anos, no último
dia 5 de dezembro, deixa um enorme vazio no meio cultural e um legado incomparável.
Fundador do curso de Artes Cênicas da UFG e do teatro do
Centro de Educação Profissional Basileu França, foi seu primeiro professor e
também diretor. Em 1972, criou o Grupo
Exercício. Homem de hábitos simples, reservado, era muito respeitado e uma
unanimidade quando se fala em teatro feito em Goiás. Hugo vivia teatro, respirava teatro. Era uma
referência. Escrevia peças, dirigia espetáculos,
formava atores, ministrava cursos. Mesmo doente nunca deixou de redigir seus
textos. Deixou uma obra inacabada, e dezenas de outras para serem publicadas. Sua última peça, Anzóis no Aquário, estreou no
Teatro Goiânia em novembro, sem sua presença na plateia.
Expoente do teatro em Goiás, Zorzetti foi professor, ator,
diretor e dramaturgo. Atuou ao lado de Cici Pinheiro, Otavinho Arantes, João
Bennio e formou uma geração de grandes talentos como Mauri de Castro,
Constantino Isidoro, Ilson Araújo, Nilson Rodrigues, Cristhiane Lopes, Augusto
César di Nízio, Terezinha Fernandes, Juquinha (Divino Magalhães de Almeida) e
muitos outros artistas goianos. Difícil encontrar algum ator que não tenha como
referência o mestre Zorzetti.
Memória viva do teatro,
Hugo Eustáquio de Macedo Zorzetti conhecia
profundamente o meio em que atuava. Nos
livros que escreveu, rememorou histórias e fatos, narrou com muito humor fatos
pitorescos dos primórdios do teatro. Registrou tudo o que viu e viveu em
Goiânia e no interior, falou do teatro na época da ditadura. Esmiuçou documentos históricos, organizou
grupos, e empurrou para a estrada da vida garotos e garotas que sonhavam com a
carreira artística.
Zorzetti conquistou todos os prêmios importantes da cultura
goiana, como o Tiokô, concedido pelo Conselho Municipal de Cultura e o Jaburu,
do Conselho Estadual de Cultura, todos os diplomas e medalhas de honra ao
mérito. Era reconhecido e respeitado por toda a classe artística. Publicou e encenou dezenas de peças, contos,
novelas, ensaios, além da trilogia Memória do Teatro Goiano – A Cena da
Capital, A Cena da Ditadura e A Cena do Interior, três obras imprescindíveis
para quem quer conhecer o teatro goiano. Arrebatou os jurados do Festival de São José do Rio Preto (SP), um dos mais
respeitados do País, nos anos 1980, com a comédia Êta Goiás, ganhando o título de “maior
comediógrafo do Brasil”. Foi tema de uma ampla matéria na revista Veja. Êta Goiás teve grande repercussão, e longa
temporada de apresentações, inclusive em
outras cidades.
Sua dramaturgia é ampla. Entre suas peças mais conhecidas estão Lições de Motim, A Barbearia, Ópera Cínica, e O Dia em Que
Reabriram a Caixego, uma crítica escancarada sobre a falência da Caixa
Econômica do Estado de Goiás, que rendeu muitas críticas ao autor. O humor teatral de Zorzetti é ácido, mordaz,
sem meio termo. Leitor voraz estava sintonizado com os acontecimentos diários.
Homem de esquerda, não poupava críticas ao sistema, aos desmandos da política.
No seu último trabalho colocou em cena um crítico de teatro e um ator medíocre.
Início
Nascido em Goiânia em
1947, Zorzetti faria 70 anos no dia 29 de dezembro. Com mais de 50 anos de
experiência, iniciou a carreira em 1964, no auge da ditadura militar, quando
ainda era estudante secundarista no Atheneu Dom Bosco. Continuou atuante no
Colégio São Domingos. Mesmo avesso à TV, participou também dos primeiros tempos
na televisão como integrante do quadro Pãopular,
no programa A Juventude Comanda, do colunista Arthur Rezende, na TV
Anhanguera, junto com o cartunista e ator
Phaulo Gonçalves. O quadro fazia uma sátira ao jornal O Popular. Segundo
dizia, o ator Hugo Zorzetti nasceu junto com o autor. “Escrevia para consumo
nosso, uma turma de aventureiros”.
A estreia no palco se deu na adaptação do livro O Pequeno Príncipe, com uma companhia do Rio de Janeiro, que veio se apresentar em Goiânia, sob a direção de Sidney Cardoso. Houve um racha no grupo e o diretor convidou atores de Goiânia para completar o elenco. Hugo era um deles. “Foi o primeiro dinheiro que ganhei com teatro”, contou em entrevista nos anos 2000. Entusiasmado com a nova oportunidade, montou a Companhia Teatral de Goiânia (CGT), em parceria com Phaulo Gonçalves, Wander Arantes, Pedro Afonso. “Era uma pretensão. Coisa de adolescente”. Deu tão certo a brincadeira que Zorzetti não parou, passando a escrever também os textos para encenar. Fogo na Canjica, que ele considerava péssima, foi sua peça de estreia, porém uma “experiência maravilhosa”.
A estreia no palco se deu na adaptação do livro O Pequeno Príncipe, com uma companhia do Rio de Janeiro, que veio se apresentar em Goiânia, sob a direção de Sidney Cardoso. Houve um racha no grupo e o diretor convidou atores de Goiânia para completar o elenco. Hugo era um deles. “Foi o primeiro dinheiro que ganhei com teatro”, contou em entrevista nos anos 2000. Entusiasmado com a nova oportunidade, montou a Companhia Teatral de Goiânia (CGT), em parceria com Phaulo Gonçalves, Wander Arantes, Pedro Afonso. “Era uma pretensão. Coisa de adolescente”. Deu tão certo a brincadeira que Zorzetti não parou, passando a escrever também os textos para encenar. Fogo na Canjica, que ele considerava péssima, foi sua peça de estreia, porém uma “experiência maravilhosa”.
Convivendo com os expoentes do teatro, Zorzetti adquiriu
experiência e conhecimento do meio cultural. Aprendeu a fazer teatro fazendo. “Minha
escola foi experimentar, quebrar a cara, acertar e errar, aprender com os
erros, ouvir muito. Fiz cursos, li muito, pesquisei, me aperfeiçoei. Sou um
profissional do teatro. Ensino porque aprendi, leio muito, tenho uma ampla
biblioteca sobre o tema, sinto-me capaz de transmitir conhecimentos. Minha área
de atuação é a lingüística, a literatura, a gramática, temas bem próximos do teatro, por isso acabei me
envolvendo”, ressaltava.
Pedagogo
Fatos do cotidiano, observações, leituras. Tudo virava assuntos nas aulas de teatro. Muito mais que um professor, Zorzetti considerava-se um pedagogo do teatro. Explorava o máximo possível a encenação, fazia demonstrações, indicava a bibliografia, exemplificava o suporte técnico a ser usado pelos futuros atores. Cada detalhe era trabalhado pelo dramaturgo, que apesar dos inúmeros convites, optou por permanecer na sua terra, fundar uma escola que desse oportunidade a todos os jovens. Seu sonho tornou-se realidade em 2000 quando foi realizado o primeiro vestibular para o curso de Artes Cênicas na UFG.
Zorzetti conhecia bem o meio universitário. O Teatro Universitário Galpão foi sua primeira aventura dentro da UFG, na década de 1960. O TGU era uma dissidência do Teatro Universitário oficial, dirigido por um professor de São Paulo, que seguia, mais ou menos, a cartilha política da época. Nada podia ser muito ousado, tudo tinha de ser comportado. Isso acabou gerando divergências. Indignado com a situação, o Diretório Central dos Estudantes resolveu intervir e criar um teatro próprio com uma linguagem menos subserviente. “Estava em casa, quando chegaram os estudantes me convidando para dirigir o grupo universitário. Eu estudava na UCG. Mas, topei. Foi uma época terrível. Éramos demasiadamente perseguidos. Fazíamos a coisa clandestina mesmo”, recordava.
Os estudantes driblavam os censores. “Mandávamos um texto
para a censura, encenávamos outro. Se havia algum censor na plateia, apagávamos
as luzes. O ensaio geral tinha de ser feito na presença do inquiridor e
fazíamos outra peça. Muitos colegas morreram, foram trucidados, assassinados
pela ditadura," relatou o dramaturgo em entrevista ao Popular.
Zorzetti colecionava
amigos. Tinha seguidores fiéis entre os milhares de alunos que freqüentaram
suas aulas nos colégios de Goiânia, onde lecionou Língua Portuguesa e
Literatura. No Colégio Univesitário (Colu) fundou o Teatro Experimental
Secundarista, o TESE que seria o embrião do Grupo Exercício. Não foi um período fácil. O professor sofreu
muita perseguição, mas felizmente venceu a resistência da direção. “Hugo foi
minha escola”, diz o ex-professor, ator e diretor Nilton Rodrigues. Ele lembra
que foi debaixo de uma mangueira na casa de seu pai que nasceu o Grupo
Exercício, cujo tripé é o próprio Nilton, Hugo e Odilon Camargo.
Nilton calcula que 80% dos atores de Goiânia, a partir dos
anos 1960, tiveram alguma ligação com Zorzetti, ou com alguém que trabalhou
diretamente com ele. “Hugo foi peça fundamental do teatro pelos cursos que
criou, as pessoas que formou e os textos que escreveu”, sublinha o diretor de
Anzóis no Aquário, peça que Hugo escreveu para si e Odilon Camargo
encenarem. Trata-se da última peça da
trilogia composta por O Cuspe e a Barbearia, que abordam os bastidores do
teatro. “Na verdade, as peças tratam da sua própria trajetória”, diz o diretor
Constantino Isidoro, da Anthropos Cia. de Teatro que dirigiu O Cuspe.
Os atores Marília Ribeiro e Luiz Cláudio, da Cia.Novo Ato, destacam que Zorzetti nunca cobrou direito
autoral de suas peças. Há mais de 15 anos,
encenam o esquete O Político e o
Assessor, texto extraído da peça Êta Goiás, e Crônicas de Motel, e nunca
pagaram por isso. “Ele era um paizão”, afirma Luiz Cláudio, ex-aluno do
dramaturgo na UFG.
Depoimentos
Nilton Rodrigues,
professor, ator e diretor
“Conheci o Hugo em 1972 no Colégio Universitário. Comecei a
fazer teatro no Teatro Experimental Secundarista (Tese) fundado por ele. Nossa
amizade vem desde essa época. Calculo ter feito cerca de 12 peças sob a sua direção. Hugo foi minha
escola, meu mestre. Dirigi seu último trabalho Anzóis no Aquário”.
Mauri de Castro,
professor de teatro, ator, diretor do Ponto de Cultura Cidade Livre
“Hugo é meu grande mestre e de centenas de atores.
Verdadeiramente um homem de teatro. Um grande guerreiro. Seu trabalho tem uma
qualidade maior do que de seus antecessores goianos. Atuava com ele desde os
anos 1970. Fui um dos atores de Êta Goiás, uma de suas peças mais importantes. Hugo
fará uma falta absurda no meio. Não há outro igual em Goiás”.
Constantino Isidoro,
professor de teatro do IFG e diretor da Anthropos Cia. de Teatro
“Fui aluno do Hugo na UFG. Fiz parte da primeira turma de
formandos do curso de Artes Cênicas, e ele
meu professor. Ficamos amigos desde então. Hugo era um mestre da ética.
Homem politizado, sintonizado com o mundo. Uma pessoa extremamente humana, intensa,
alegre, que gostava de viver. Quando dirigia focava no ator. Encenei dele
Lições de Motim, O Cuspe e O Despertar da Primavera, que acaba de conquistar o
Prêmio Petrobras de Circulação. Vamos iniciar a turnê em janeiro de 2018. Vou
sentir muito a sua falta”.
Ilson Araújo, ator,
diretor e técnico, integrante do Grupo Exercício
“Estou no grupo desde 1976, quando conheci o Hugo. Foi ele
que me fez ator, me profissionalizou, ajudou a encontrar o meu caminho de uma
forma muito paternal. Devo a ele tudo o que sou. Participei de praticamente
todas as suas peças. Com a morte dele o teatro ficou órfão. Não vejo ninguém
com capacidade para substituí-lo. É difícil falar nele neste momento. Ele era o
próprio teatro”.
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