quarta-feira, 1 de janeiro de 2020


                           
                       

             PERDAS E GANHOS DE UM ANO QUE TERMINA



 2019 não foi um ano fácil para a cultura de uma maneira geral. Houve muito mal entendido, bate boca e enfrentamento. Mas, também teve muita união da classe artística para pressionar os responsáveis em busca de seus direitos. Apesar de serem muitos os fatores negativos, os positivos houve muita coisa boa movimentando a cidade o ano inteiro. Concertos de orquestras, festivais, shows artísticos para todos os gostos, peças de teatro, espetáculos de dança ocuparam os espaços da capital. 
A recriação da Secretaria de Estado da Cultura foi considerada muito relevante pelos artistas, diretores, escritores e produtores culturais. A liberação do pagamento de R$ 30,7 milhões do Fundo de Apoio à Arte e Cultura (FAC) bem como sua manutenção foram outras importantes conquistas da classe. Entre as perdas estão a não realização de projetos consolidados como os Festivais de Cinema Ambiental e Canto da Primavera, a Mostra de Teatro de Porangatu, a diminuição dos valores  e atraso na publicação do edital da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e não publicação do edital da Lei Goyazes. Lamentável também foi a censura ao show de lançamento do CD do cantor e compositor Itamar Correia, na cidade de Goiás. 
Há esperança de dias melhores em 2020, como destaca o ator, produtor cultural e vice-presidente da Federação de Teatro do Estado de Goiás (Feteg), Norval Berbari. “Com o pagamento do edital 2018 e os recursos aguardados pela classe artística do Projeto Goyazes, também referente a 2018, esperamos que ainda no primeiro semestre de 2020 excelentes trabalhos e produtos ocupem os espaços culturais da cidade”.   
Veja a avaliação de 2019 feita pelos produtores culturais de Goiás     
Marci Dornelas, diretora de Políticas Culturais da Secretaria Municipal de Cultura “2019 foi um ano de muitas dificuldades. Mas, conseguimos realizar todos os projetos apesar dos cortes de verbas. No geral, o ano foi positivo. Fizemos o Festival de Artes Cênicas Goiânia em Cena, com resultado muito bom. As Leis de Incentivo à Cultura de modo geral deixaram muito a desejar. Muitas pessoas estavam com projetos organizados e aprovados e tiveram que cancelar”. 

Laila Santoro, produtora cultural e Conselheira Municipal de Cultura
“Vivemos um retrocesso cultural  na esfera estadual e federal. Tivemos como base apenas a Lei Municipal de Cultura. Foi muito triste ver tanta conquista sendo perdida. O que foi muito bom, foi a união da classe artística para se fazer ouvir, mesmo sob pressão. Promovemos muitos encontros, debatemos e conseguimos reverter algumas situações a nosso favor. Outo ponto positivo, é o surgimento de ideias inovadoras e criativas como os patrocínios diretos, vale ingressos para o teatro, shows alternativos, abertura de novos espaços culturais. Acho tudo isso muito bacana”. 

Nilton Rodrigues, ator e diretor do Grupo Exercício de Teatro
“Não costuma ser fácil a vida de quem atua na área cultural em Goiás. 2019 esmerou-se a tal ponto que o acontecimento que talvez pudesse ser citado como a maior conquista figura como a pior: o ressurgimento da Secretaria de Estado da Cultura, que ainda não cumpriu o seu papel. Quando esteve à frente da secretaria, o escritor Edival Lourenço foi omisso, incompetente. Houve até censura ao cantor e compositor Itamar Correia e a redução dos recursos do Fundo de Apoio à Arte e Cultura. Apesar disso, 2019 foi rico em espetáculos e shows de qualidade artística. Citar nomes seria injustiça. Não vislumbro coisas boas para 2020. Mas estou confiante no sucesso de nossa empreitada no campo jurídico para fazer valer nossos direitos”. 
Norval Berbari, ator, produtor cultural  e vice-presidente da Federação de Teatro do Estado de Goiás
“O que houve de melhor em 2019 foi a recriação da Secretaria de Estado da Cultura, o pagamento do Fundo de Apoio à Arte e Cultura (FAC), no valor de R$ 30,7 milhões que permitirá a execução de quase 400 projetos no Estado, e ainda  mobilização da classe artística que resultou no pagamento da FAC. Lamentável foram a escolha de um secretário sem força política para encaminhar e resolver as questões da pasta. A paralisação do funcionamento da Lei Goyazes de Incentivo à Cultura, o não lançamento da FAC 2019 e a tentativa do Governo e extingui-lo, a censura ao cantor e compositor Itamar Correia, na cidade de Goiás e a não realização dos festivais de Cinema Ambiental (Fica), Canto da Primavera e Mostra de Teatro de Porangatu foram outras atitudes negativas este ano”. 

Fernanda Fernandes, produtora cultural 
“Eu diria que 2019 foi um ano muito dolorido para a cultura. Um rolo compressor, pois houve um verdadeiro desmonte das atividades culturais. Teve censura, falta de apoio aos projetos, corte de verbas às leis já conquistadas, atrasos nos pagamentos. A recriação da Secretaria de Estado da Cultura foi um ponto positivo, mas ainda estamos inseguros em relação ao seu projeto de ação. Outro ponto importante é a permanência do Fundo de Apoio à Arte e Cultura e a manutenção do curso de Produção Cênica do Instituto de Educação Tecnológica Basileu França”.         

ANÁLISE

                             UM ANO BOM, APESAR DE TUDO 

Natureza Morta,Grupo Ateliê do Gesto

Mesmo com reclamações pipocando de todos os lados e as dificuldades que a classe artística tem enfrentando, 2019 foi um ano de muitas produções culturais em Goiânia, e surpresas boas no âmbito da dança. Foi impossível acompanhar as peças em cartaz, os festivais e as estreias. 
Dois festivais, Aldeia: II Festival de Todas as Artes (antigo Aldeia Diabo Velho),  promovido pelo Sesc Goiás, e Festival de Artes Cênicas Goiânia em Cena, da Secretaria Municipal de Cultura de Goiânia, movimentaram a capital com uma diversificada programação de música, dança, teatro, circo e oficinas diversas, ocupando teatros, praças, parques, escolas, com entrada gratuita ou ingressos a preços acessíveis. 
Aguardado com expectativa, os dois festivais oferecem oportunidades aos grupos locais e também traz artistas convidados que dificilmente chegariam ao circuito artístico da cidade. Dois deles vale a pena destacar. Lúdico, sensível, interpretado com muita competência pela atriz Cássia Kiss, Meu Quintal é Maior Que Mundo, baseado nos versos do poeta pantaneiro Manoel de Barros (MS), emocionou a plateia.  Simples, direto, carregado de dramaticidade, Traga-me a Cabeça de Lima Barreto, do ator baiano radicado no Rio de Janeiro, Hilton Cobra (Cia. Dos Comuns), livremente inspirado na vida e obra do escritor Lima Barreto, foi outro momento enriquecedor proporcionado pelo teatro. Quem nada sabia sobre o autor de Policarpo Quaresma e Clara dos Anjos saiu interessado em conhecê-lo melhor.  
Exceto pela abertura do parlapatão Hugo Possolo, com o solo Prego na Testa (de muito mal gosto), o Festival de Artes Cênicas Goiânia em Cena, ocupou diferentes espaços com uma  programação interessante, dirigida a todo tipo de público. E o melhor, sem pagar nada. Entre os destaques, A Invenção do Nordeste, do Grupo Carmin do Rio Grande do Norte. Divertido, recheado  de referências históricos, projeções em vídeo, o espetáculo diverte, mas também ensina e esclarece os xenófobos sobre os valores da cultura e do povo nordestino. O espetáculo nasceu a partir da pesquisa feita pela diretora Quitéria Kelly, que estava incomodada com o preconceito contra o Nordeste, sobretudo a partir de 2018. Com muita competência, Quitéria produziu um espetáculo que desconstrói a imagem e preconceituosa e estereotipada do Nordeste, que envolve a plateia do começo ao fim.  


Ópera
O elogiado  conto A Décima Quarta Estação, publicado no livro Avarmas do escritor Miguel Jorge, não conseguiu o mesmo êxito no palco.  Primeira ópera genuinamente goiana (libreto, composição, elenco, direção), não empolgou apesar de todo o esforço da direção, do elenco, do coro e da orquestra. Exibida em duas sessões, a ópera saiu de cena e não deixou boa lembrança. Ocorrida na cidade de Catalão no começo do século 20, a história narra a prisão arbitrária, a flagelação e a morte de um homem injustamente acusado de um crime que não cometeu.  Infelizmente, os cantores não conseguiram expressar toda a dramaticidade exigida, o cenário e o figurino não agradaram e a ópera desandou. Composta por Estércio Marquez, a música executada pelo Coro e Orquestra Sinfônicos de Goiânia, sob a regência do maestro Eliseu Ferreira, não causou o impacto desejado. 
Os espetáculos nacionais ofuscaram as produções locais na programação dos festivais.  Inspirado na cultura sertaneja, Fundo do Poço, do Grupo Arte & Fatos, estreou no Festival de Artes Cênicas Goiânia em Cena. A dramaturgia fala de assédio, perda, solidão e  pobreza. Tema recorrente na pauta do grupo, o espetáculo remete a produções anteriores do diretor e autor Danilo Alencar, com clima de dejà vie.    


Ano da dança
A dança dominou o cenário artístico de 2019 na capital. Com garra e muita disposição de dar continuidade ao seu trabalho, a Quasar Cia. De Dança estreou Estou Sem Silêncio, de Henrique Rodovalho, no Centro Cultural da UFG, iniciando uma temporada que está rendendo frutos. Ainda sem um local para chamar de seu e sem elenco  fixo de bailarinos, o grupo ocupou a pauta de teatros importantes como o Alfa, em São Paulo. A coreografia discute o empoderamento feminino de uma forma muito abrangente e muita intimidade. Simples, delicado e envolvente. Assim se pode definir a criação de Henrique Rodovalho para marcar os 31 anos da companhia, que retorna ao palco com força total. 
A Giro8 Cia. De Dança, da coreógrafa Joisy Amorim está ocupando seu merecido lugar na dança nacional e até internacional, fazendo apresentações e conquistando prêmios. Teia, o mais recente espetáculo, é uma grata surpresa e consolida sua performance contemporânea. Nesta criação, Joisy trabalhou ao lado do dramaturgo espanhol Antonio Gómez Casas e do músico Cleyber Ribeiro. A obra procura refletir sobre as intrincadas relações humanas, numa  teia de sentimentos : conflitos, aflições, sinceridade, amor e afetos. Completando oito anos de existência, a Giro8 promete surpresas, caso vença as dificuldades que as companhias de dança enfrentam para se manter. 
Não poderia deixar de citar dois nomes importantes para a dança de Goiás. Ex-bailarinos da Quasar Cia. De Dança, João Paulo Gross e Daniel Calvet  consolidam a marca do Ateliê do Gesto com muita competência. Ótimos bailarinos, também se revelam como coreógrafos criativos e sintonizados com a arte e a cultura. Inspirado em Grande Sertão: Veredas, a obra máxima de Guimarães Rosa, espetáculo O Crivo  abriu caminho para apresentações em várias cidades. Natureza Morta, a mais recente coreografia do duo, construída a partir da obra do artista plástico Farnese, é uma bela página da dança, que fortalece mais ainda a parceria e descortina novos horizontes aos talentosos bailarinos.  


 Foto: Divulgação