segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

ESTREIA




                                              ÍCONES DA VINGANÇA

Guido Campos Correa

Para produzir seu novo espetáculo SertãoHamlet, o ator Guido Campos Correa decidiu fazer uma residência artística no interior do Ceará. Queria fazer um contraponto entre o cangaceiro Lampião, filho do sertão nordestino, e Hamlet, o príncipe da Dinamarca, personagem criado pelo inglês William Sheskeapeare.  

Não foi tarefa fácil focalizar duas personagens tão díspares e complexas. Lampião liderou um bando de ladrões e assassinos nos anos 1930. Hamlet pertencia à nobreza da Dinamarca, um país nórdico, que nada tem a ver com a aridez do sertão. Ambos têm em comum a trágica morte do pai e o desejo de vingança.  O tio de Hamlet, Cláudio, matou seu pai, para ocupar o trono e desposar a viúva Gertrudes. Por causa de uma briga de terras no sertão de Pernambuco, o pai de Virgulino Ferreira, o Lampião, acabou assassinado. Revoltado, o filho jurou vingança e virou bandido. 

Lampião era um homem mal, vingativo, assim como Cláudio, o tio de Hamlet. Tornou-se mito na voz dos cantadores de repente e poetas de cordel. O cinema contribuiu para torná-lo um mito. Obra-prima de Shakespeare, Hamlet é uma das peças mais famosas do bardo inglês, encenada no teatro incontáveis vezes, filmada por atores consagrados. Guido Campos Correa encontrou pontos em comum entre Lampião e Hamlet.  Focou na vingança  para escrever a dramaturgia de SertãoHamlet, levada ao palco pela Sertão Teatro Infinito Cia. 

Antes de entrar em cena, o ator recebe a plateia. Quando todos se acomodam nas cadeiras, fala sobre seu trabalho , a imersão nos dois universos para compor a história, que encerra a trilogia iniciada com A Terceira Margem do Rio, adaptação do texto de Guimarães Rosa, nos anos 1990, e em seguida  Boi,  peça baseada na obra do goiano Miguel Jorge. As duas peças deram ao artista a oportunidade de viajar por todo o País e exterior, conquistar prêmios em festivais. Vinte três anos se passaram entre a estreia de A Terceira Margem do Rio e Sertão Hamlet.  
      
Nos quatro meses que viveu no sertão Cariri (Crato, Juazeiro do Norte, Nova Olinda), o ator mergulhou fundo na cultura local, rica em religiosidade e folclore,  pinçando temas da terra para compor os personagens. Hábitos, costumes, valores, crenças populares ainda muito em voga principalmente entre a população mais pobre.  Fortemente influenciada pela figura mítica do Padre Cícero, a religiosidade é um dos pontos fortes da região. Guido explora muito bem o tema inserindo logo no início uma bela cantoria de procissão. Um pequeno altar no meio do palco e  um foco de luz ressalta a imagem de Padre Cícero, santo cultuado pelo povo nordestino. As rezas e os cânticos à Nossa Senhora da Imaculada Conceição  ajudam a plateia a entrar no clima do sertão. 

Ator de muitos recursos, Guido vai aos poucos assumindo as personagens que pinçou do dia a dia do Cariri.  Transita com empenho entre as figuras simplórias de Juvêncio,  Edilania, Edmilson e a beata Luíza.  Homens e mulheres fortes, rústicas, corajosos vão sendo delineadas pelo ator/autor.  Recitador de cordel, ator de circo do interior,  Juvênio é o primeiro amor de Edilania, jovem sonhadora e ingênua. Juvênio prefere o circo a ficar com ela. Sozinha, se engraça por Edmilson, confia em suas nas boas intenções. Acaba mal.   Edilania é estuprada e denuncia o mal feitor.  Edilania sofre preconceito da família, dos amigos, acabando na prostituição, fim de tantas mulheres do sertão. Um dos pontos altos da encenação, o ator vive todo drama da cena. 

Guido Campos Correa absorveu bem a humanidade dos seus personagens, os conflitos interiores, o cotidiano de uma terra de costumes arraigados. Apegada à religião, a anciã Luíza, velha beata de 94 anos, dá ao ator a oportunidade de mostrar sua potencialidade cênica. Incorpora seus trejeitos, sua fala tremida, o olhar perdido. Vestida como uma santa, Luíza expõe com sabedoria sua longa experiência de vida, alegrias e sofrimentos de uma vida solitária. 

A eloquência do texto de Shakespeare fica para a reta final da peça, quando o ator assume o papel de Hamlet. Traz para a cena não só a tragédia de vida do príncipe dinamarquês, mas a situação do Brasil de hoje com suas tantas diferenças, contradições, corrupção política, falta de ética.  A dor de Hamlet é a dor de todos. 

SertãoHamlet não é o melhor espetáculo de Guido Campos Correa. Com 37 anos de carreira, o ator  é adepto dos monólogos, das longas temporadas. Viveu  grandes momentos em A Terceira Margem do Rio, sob a direção de Henrique Rodovalho, e Boi, dirigido por Hugo Rodas. Foram dois momentos marcantes da sua carreira de 37 anos.  Dessa vez preferiu se escrever, dirigir e atuar, o que não deixa de interessante, pois tem a chance de explorar outros potenciais. Na primeira experiência, cometeu alguns excessos que um bom diretor poderia suprimir sem comprometer o resultado final. 

Com recursos da Lei Municipal de Cultura, Guido Campos Correa cercou-se de bons profissionais para compor a ficha técnica de SertãoHamet. Cuidou ele próprio do figurino, confeccionado pelas costureiras do sertão, adquiriu os adereços (gibão de couro, chapéus, sapatos, alpercatas) de mestre Expedito Seleiro, famoso pelas suas criações que lembram os tempos do cangaço, o rosário e o reisado de mestre Aldenir.  Guido tomou emprestado das senhorinhas rezadeiras orações devocionais e canções. Visualmente o efeito é encantador.  
   
 Marci Dornelas assina a produção, Roosevelt Saavedra, a técnica de luz e João Melo, técnico de som.  A trilha sonora vai de Diana, Luiz Gonzaga, passa a David Bowie e Rollings Stones.  
                

Fotos: Layza Vasconcelos

Texto originalmente publicado no site www.ermira.com.br

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