HISTÓRIAS DE TERNURA
HISTÓRIAS DE TERNURA
Há mais de um ano,
a artista plástica Rossana Jardim, me fez um convite instigante por telefone:
escrever uma história sobre ternura. Falou do projeto que ela e o médico Ademir
Hamú tinham de reunir diversas histórias para compor um livro focalizado nesse
sentimento que às vezes nos acomete sem nos darmos conta. Achei a idéia interessante. Mas, disse a ela
que nunca escrevera nada do gênero. Ela insistiu, pedindo que vasculhasse minha
memória. Desliguei o aparelho, e me pus
a pensar, tentando lembrar algum assunto marcante da minha vida que valesse a
pena compartilhar com os leitores. Passei dias matutando.
Pouco tempo antes
do convite, encontrara uma ex-colega de infância. As recordações foram
inevitáveis. Ela recordava fato que já estavam apagados da minha memória havia
anos. Da escola, onde trabalhei mais de 10 anos, as lembranças eram mais
vívidas, algumas até engraçadas, como o esquecimento das comemorações do Dia da
Criança, data importante no calendário escolar.
Histórias, há
muito apagadas da memória, foram surgindo. Não foi difícil escrevê-las. Difícil
mesmo foi enviar o texto para publicação. Temia a tal pieguisse. Os dois textos
que escrevi compõem o livro Histórias de Ternura, organizado por Rossana Jardim
e Ademir Hamú, que acaba de ser lançado pela Editora Kelps.
O livro Histórias
de Ternura traz 47 histórias de escritores, artistas plásticos, jornalistas,
médicos, psicanalistas, professores, arquitetos e outros profissionais goianos
que tiveram o privilégio de reviver suas memórias, graças a essa importante
iniciativa. Em meio à tristeza de fatos que lemos todos os dias na imprensa,
Histórias de Ternura é um oásis de boas recordações.
Deixo aqui
registrado meus dois textos publicados em Histórias de Ternura, que segundo os
organizadores, terá uma segunda edição.
Buquê
Fran foi criada brincando na rua. Soltava pipa, brincava de finca na lama,
jogava queimada nas ruas poeirentas. Valia
tudo na hora das brincadeiras, até tomar
banho de lama na enxurrada para horror de sua mãe. A garota era mais uma no
bando de meninos e meninas migrantes, cada qual de um lugar diferente, que
morava na Goiânia dos anos 1960, ainda muito precária em termos de benefícios para a população.
Mexer com cachorro preso nos quintais para enfurecer os donos era outro
divertido passatempo favorito da meninada que não tinha muito o que fazer em
casa depois da aula.
Franzina, olhos grandes curiosos, cabelinho curto no
rosto redondo, Fran tinha imaginação de sobra. Estava sempre inventando alguma
coisa para fazer. Tinha um único vestido, vermelho, bordado, que usava na missa
dominical. Seu sonho era ter uma boneca de cabelo loiro, olho azul. Nunca teve.
Aliás, teve uma, tão pequeninha que não dava nem pra fazer vestidinho. Na falta
de uma, tudo servia de brinquedo: carretel de linha, tampinha de garrafa, vidro
de remédio vazio, rolhas, retalhos.
Fran gostava de flores. Vasculhava terrenos baldios,
quintais, se embrenhava no mato colhendo florzinhas para fazer pequenos buquês
para enfeitar as casinhas. Ensinava as colegas que não tinham habilidade a
fazer raminhos coloridos e colocar em vidros como se fossem vasos
distribuindo-os na roda das brincadeiras.
O tempo passou, Fran cresceu, mudou de bairro, separou-se para sempre dos
amigos que cresceram com ela. Muitos dos
sonhos de infância ficaram para trás. Um dia, encontrou uma antiga colega, de quem não lembrava mais, tampouco o nome. Apesar do
tempo, ela não esquecera Fran. Nas
suas recordações infantis, Fran tinha uma enorme importância que a
fizera inesquecível: os tais buquezinhos de flores, que a ensinara a fazer na
infância.
Constrangida, Fran disse que não se lembrava mais do
episódio. E a ex-companheira de tantas brincadeiras retrucou; “Para você nada
disso pode ter importância. Mas, para mim tem um significado especial. Ainda
vejo a delicadeza de suas mãozinhas arrancando flores do mato e formando buquês. Eu tinha dificuldade em assimilar
aquilo e você insistia com paciência para que eu aprendesse”.
Fran remexeu na memória atrás do passado que tantas lembranças deixara. Infelizmente as coisas ruins do
presente suplantara situações tão puras
e belas da sua infância. Recordou-se que
houve uma época que tinha vergonha do
próprio nome, da família, do lugar aonde morava, das roupas que vestia. Tudo
passou, assim como passa tudo na vida. Menos
a vontade de arrancar flores dos jardins alheios para enfeitar a
casa.
Xiiiiii... A tia
esqueceu o Dia das Crianças
Houve um tempo em que eu trabalhava
cerca de 12 horas por dia. Era quase uma visita na minha própria casa. Dava
aula pela manhã e à tarde escrevia para jornal. Quase não sobrava tempo para
mim mesma. Nos fins de semana, preparava aula e corrigia prova.
A vida corria em ritmo frenético. De tão absorvente,
a rotina extenuante me fazia esquecer de algumas obrigações, como organizar uma
festa no Dia da Criança. Por incrível que pareça isso aconteceu comigo, uma
professora de 4ª série de escola pública.
Minha turminha era barulhenta,
levada e muito brincalhona. Nada fácil. Mas, atenta a todos os detalhes,
principalmente às datas festivas. Infelizmente, por um lapso de memória ou
descuido, o dia 12 de outubro chegou, e para mim parecia mais um dia normal em
sala de aula. Até eu chegar à escola.
Salas enfeitadas com balões
coloridos, professores animados preparando bandejas de docinhos e bolos,
refrigerantes, lembrancinhas, cartões. Toda a escola estava em festa. E eu de
mãos abanando. Nem uma balinha. Desabei. Não havia como remediar a minha falta
de atenção naquela hora. Antes do recreio, as festas começaram com música,
comes e bebes, sorteios de brindes, bingos, gincana. Exceto na minha classe.
Naquele dia, meus alunos foram os únicos a
comerem a merenda escolar. Alguns meninos e meninas até repetiram o macarrão
com sardinha como de hábito. Educadamente nada disseram, não fizeram cobranças.
Mas, aquele silêncio, quebrado pelo barulho divertido das outras salas, incomodava.
Constrangida diante dos pequenos, e também das colegas de trabalho, via a
decepção no olhar da cada um. Preferi não dizer nada, tampouco inventar
desculpa para não aumentar o mal estar.
Quando a aula terminou e me
encaminhava para o carro, uma professora, cujos filhos eram meus alunos, me
chamou e foi logo sapecando: “A Evelyn me disse, mãe a tia não gosta da gente.
Ela não fez festa pra gente”. Foi difícil ouvir aquilo. Que vergonha! Tinha de
encontrar uma solução para desfazer o mal entendido da garotada. E rápido.
Enquanto dirigia, foi maquinando uma forma de remediar a situação.
Como era sexta-feira, teria tempo
de sobra para organizar uma comemoração bem bacana. O fim daquela semana foi de
correria. Comprei lembrancinhas, saquinhos de bombom, encomendei bolo e
salgadinhos, refrigerantes, confeccionei um simpático cartãozinho com pedido de
desculpas, fiz cartazes com frases carinhosas para consertar o estrago.
Cheguei cedo à escola na
segunda-feira. Preparei a sala para que eles vissem de cara que o clima era de festa.
Organizei um bingo, levei CD de música infantil para que eles pudessem cantar, dançar,
representar, improvisar. Queria que todos se sentissem queridos e muito amados.
Foi uma manhã memorável. A
recompensa veio no final. Na sua sinceridade espontânea um japonesinho me disse
na bucha. “Tia, pensamos que você não gostava de nós. Todo mundo ganhou festa e
você tinha esquecido da gente”, disse. “Amanhã vamos fazer festa pra você. A
gente não esqueceu do se dia”, gritou o espertinho. Era Dia do Professor .
Para bom entendedor, meia palavra
basta. As palavras do menino serviram de lição. Todo ano, quando chegava o
calendário escolar, eu fazia questão de circular o Dia da Criança.
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