segunda-feira, 18 de maio de 2009

Hugo Zorzetti

Entrevista histórica concedida pelo diretor e dramaturgo Hugo Zorzetti ao Magazine do POPULAR, no dia 14 de dezembro de 2005, editada por Rosângela Chaves. Registro importante para a posteridade, por isso foi postado neste blog. .

Memórias do camarim

Ninguém melhor do que o diretor, teatrólogo e professor Hugo Zorzetti para contar a história do teatro em Goiás.

Valbene Bezerra

Um dos fundadores da Escola de Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, coordenador do curso de teatro do Centro de Educação Profissional Basileu França, experiente dramaturgo e diretor do Grupo Exercício, ele conhece a área como poucos, afinal há mais de 50 anos atua no meio. Zorzetti trabalhou e conviveu de perto com Otavinho Arantes, Cici Pinheiro e João Bennio, três expoentes das artes cênicas em Goiás. Ele resgata fatos marcantes, as estreias, a formação das companhias, as rivalidades e traça o perfil dessas três personalidades no livro Memória do Teatro Goiano, primeiro de uma série de quatro obras que autografa amanhã, às 20 horas, no Museu de Arte de Goiânia, no Bosque dos Buritis.

Os outros três volumes, Conversa de Camarim, Manual do Humorista Doméstico e Comédias, também integram o projeto Memória do Teatro Goiano, uma iniciativa do autor para resgatar a trajetória das companhias de teatro de Goiás. Hugo argumenta que não quis fazer biografia, mas traçar a personalidade e a maneira de atuar de Bennio, Cici e Otavinho, para dar subsídios às novas gerações do teatro, especialmente aos estudantes.

Foram 10 anos de intensa pesquisa, feita por conta própria, que só agora pôde ser publicada graças ao patrocínio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Zorzetti revela que já concluiu o segundo e o terceiro volumes da sua coleção sobre teatro. No segundo, os grupos de teatro da capital, personagens da cena atual e diretores como Carlos Fernando Magalhães, do extinto Grupo de Teatro Universitário, serão o assunto em destaque. O terceiro ressuscita os heróis dos palcos das cidades do interior.

Memória do Teatro Goiano é um importante trabalho, não só para estudantes, atores, diretores, produtores de teatro. É também uma leitura interessante para quem deseja saber mais sobre o cotidiano de sua própria cidade. Conversa de Camarim reúne fatos engraçados ocorridos nos bastidores do teatro. Em um deles, Hugo Zorzetti conta como teve de ir com urgência a São Paulo, obedecendo a ordens do ex-superintendente da Cultura Aldair Ayres, para comprar perucas e maquiagem, que nunca foram usadas, para a reinauguração do Teatro Goiânia, em 1977, no governo de Irapuan Costa Júnior. “Alguém cismou que num teatro não podiam faltar perucas e maquiagem. Foi gasta uma fortuna com esse material, levado pelos grupos que passaram pelo teatro”, diz Zorzetti.

O volume Comédias traz seis textos do autor encenadas pelo Grupo Exercício: Com a Breca, Santa! ou Quem Está Falindo as Grandes Instituições Financeiras do País?, Morreu, Mas Passa Bem, Ópera Cínica, O Prêmio, O Impublicável Dossiê da Intimidade ou Crônicas de Motel e Humilhação. Um de seus trabalhos mais conhecidos, Eta! Goiás, ficou fora do livro, pois ele nunca o passou para o papel. Quarto volume da série, Manual do Humorista Doméstico – Rudimentos Teóricos e Práticos sobre o Riso e as Técnicas de Comicidade, lançado em 1998, está com a primeira edição esgotada. Trata-se de uma referência teórica para pesquisa e reflexão sobre a comicidade e o riso.

Zorzetti decidiu publicar a pesquisa quando criou, com o apoio de Glacy Antunes, diretora da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, o curso de Artes Cênicas, em 2000. Encarregado da grade curricular, fez questão de inserir a disciplina Teatro Goiano. “Foi um deus-nos-acuda. A professora Mazé Alves se deparou com a completa falta de material”, revela. Hugo resolveu deixar os escrúpulos científicos de lado e contribuir na recuperação da história do teatro goiano.

É sem dúvida urgente fazer esse resgate. Muitas pessoas que viveram a história ou se recordam de fatos importantes da época estão morrendo. “A maior parte do material está nas mãos das famílias. Fiz muita pesquisa às pressas, na casa da própria pessoa, porque elas não emprestam. Têm ciúmes”, disse. Na entrevista a seguir concedida ao POPULAR, Zorzetti fala sobre vários assuntos, afinal ele próprio é uma história viva do teatro em Goiás.

Perfil
“Sou goianiense. Comecei por volta de 1964, quando estudava no Atheneu Dom Bosco, com pessoas que conheciam teatro. Depois continuei no Colégio São Domingos. Fiz um quadro no programa A Juventude Comanda, do colunista Arthur Rezende, na TV Anhanguera, junto com o Phaulo Gonçalves (um ator injustiçado, que teve uma passagem maravilhosa pelo teatro). Chamava-se Pãopular. Era uma sátira ao POPULAR. O ator Hugo Zorzetti nasceu junto com o autor. Escrevia para consumo nosso, uma turma de aventureiros”.

¤Primeira peça
“Se alguém se lembrar dela digo que não fui quem a escreveu. Chamava-se Fogo na Canjica. Era abominável. Mas foi uma experiência maravilhosa. Eu tinha acabado de participar de uma adaptação do O Pequeno Príncipe, com uma companhia do Rio de Janeiro, que veio se apresentar aqui. Era dirigida pelo Sidney Cardoso. Houve um racha na companhia e ele convidou atores de Goiânia para o elenco. Fui um deles. Foi o primeiro dinheiro que ganhei com teatro. Entusiasmado, montei a Companhia Teatral de Goiânia (CGT), junto com o Phaulo Gonçalves, Wander Arantes, Pedro Afonso. Era uma pretensão. Coisa de adolescente”.

¤Chrystian
“O Zezinho [o Chrystian, da dupla Chrystian & Ralf] integrou o elenco como o Pequeno Príncipe. Ele era um pirralho. O pai o levava para os ensaios em uma bicicleta. No segundo dia de apresentação no Teatro Goiânia, roubaram a bicicleta dele. Aí toda a renda da temporada foi para pagar o prejuízo do pai do Zezinho. Era uma aventura fazer teatro”.

¤Bennio
“Conheci João Bennio nos anos 1960. Ele morava no segundo pavimento do Teatro de Emergência, que existia onde hoje é o Jóquei Clube. Estava perambulando pelos bastidores do teatro e quebrei uma lâmpada importada, caríssima. Alguém me disse: “Olha, essa lâmpada é do João Bennio”. Subi as escadas para pagar a lâmpada. Acabamos fazendo amizade. Pouco depois, passei a ensaiar meu grupo no teatro dele. Um dia, estava ensaiando e o Bennio desceu e me disse: “Vocês não estão gritando muito?”. Foi a primeira admoestação que recebi como ator e diretor”.

¤Experiência
“Aprendi a fazer teatro fazendo. Minha escola foi experimentar para saber até onde vai a linguagem teatral, quebrar a cara, acertar e errar, me penitenciar com os erros, ouvir muito. Fiz cursos, li muito, pesquisei, me aperfeiçoei. Teatro nunca foi uma escolha. Entrei no teatro como brincadeira. Sempre digo que não gosto de teatro. Não sou apaixonado pelo teatro. Sou um profissional do teatro. Ensino teatro porque aprendi, leio muito, tenho uma das maiores bibliotecas sobre o tema, me sinto com capacidade para transmitir meus conhecimentos. Minha área de atuação é a lingüística, a literatura, a gramática, bem próximas do teatro. Acabei me envolvendo”.

¤Pedagogo
“Tudo o que faço vira aula de teatro. Não me considero um professor de teatro, mas um pedagogo do teatro. Todos os atores que trabalham comigo sabem que começo a dirigir um espetáculo como encenador e termino como pedagogo. Quero mostrar o porquê de tudo, as raízes do que estou demonstrando, o suporte técnico, o respaldo de bibliografia. Tive excelentes convites para seguir carreira fora daqui, mas não me sinto como diretor de teatro. Nos últimos dez anos, tenho feito muito pouco teatro. Estou mais envolvido com o estudo. A fundação da Escola de Artes Cênicas exigiu muito de mim, porque eu era praticamente o único professor de teatro da universidade”.
Aprendi a fazer teatro fazendo. Minha escola foi experimentar para saber até onde vai a linguagem teatral, quebrar a cara, acertar e errar, me penitenciar com os erros, ouvir muito. Fiz cursos, li muito, pesquisei, me aperfeiçoei. Teatro nunca foi uma escolha. Entrei no teatro como brincadeira. ”

¤Sátira
"Fiz dramas e tragédias. Grande parte do trabalho que fiz no Teatro Universitário tinha conotação política. Foram mais de dez peças. A comédia entrou na minha vida até para satirizar a mim mesmo. Cansado de fazer teatro com platéia reduzida, resolvi fazer comédia de consumo imediato. É mais fácil para arregimentar público e recursos, e pode ser feita no calor do momento histórico".

¤Teatro jornalístico
"Gostaria de fazer teatro jornalístico, para explorar os assuntos do momento. Aqueles que tocam o ser humano, que podem criar e demover opiniões. Acho que o teatro tem essa função. Infelizmente, teatro é caro, não só em termos financeiros, mas também no sentido de empenho, desempenho. Para mim, o teatro pleno é o que invoca aquilo que está acontecendo, sem a pretensão de ser uma coisa para o futuro. Seria bom que estivesse na folhinha ao mesmo tempo que no palco".

¤Grupos
" O Teatro Universitário Galpão foi a minha primeira aventura dentro da UFG, na década de 1960. Era uma dissidência do Teatro Universitário oficial, que era dirigido por um professor de São Paulo. Ele seguia, mais ou menos, as notas do clima político da época. Nada podia ser muito ousado politicamente. . O teatro tinha de ser comportado. Isso acabou criando divergências, e o DCE resolveu criar um teatro próprio. Estava em casa, quando chegaram os estudantes me convidando para dirigir. Eu estudava na UCG. Foi uma época terrível. Éramos demasiadamente perseguidos, foiceados. Fazíamos a coisa clandestina mesmo. Mandávamos um texto para a censura, encenávamos outro. Se havia algum censor na platéia, apagávamos as luzes. O ensaio geral tinha de ser feito na presença do inquiridor e fazíamos outra peça. Muitos colegas morreram, foram trucidados, assassinados pela ditadura."

¤Formação de ator
"É importantíssimo. A Escola de Teatro da UFG mudou a cara do teatro em Goiás. Não que antes não houvesse teatro. Mas hoje já existe um questionamento técnico para se aprofundar, um avanço dos limites técnicos, do conhecimento da história do teatro. Muitos professores têm vindo de fora para dar aulas aqui. O próprio corpo docente da escola sentiu necessidade de buscar mais oxigênio. Hoje os artistas têm a quem recorrer. Há um campo vasto para experiências, para pesquisa. É claro que não é uma escola para fazer talento. É uma escola para montar talento, substanciar talento, e para trazer ciência".

Livro
" Cici Pinheiro, João Bennio e Otavinho Arantes influenciaram toda uma geração. É difícil não sentir a presença desses três expoentes dentro do panorama teatral do Estado. Acho que com relação a eles esgotei o assunto nesse livro. Até porque eu não quis fazer um trabalho biográfico, tampouco fazer algo que trouxesse um registro da obra de cada um. O peso da vida deles, a ligação de cada um desses elementos dentro dessa história, é muito grande. Foram três pessoas com alma teatral. Cici Pinheiro sofreu por ter dado o primeiro beijo no teatro. Foi discriminada. O Otavinho Arantes, que muita gente chama de baluarte do teatro, também foi discriminado. Eles tiveram uma vida difícil trabalhando pelo teatro. E estão sendo esquecidos. Quis pegar a alma deles e colocá-la dentro do livro".

QUEM FORAM

Otávio Zaldivar Arantes (Otavinho Arantes) – Nasceu em Trindade, em 1922. Morreu atropelado em Brasília, no dia 10 de julho de 1991. Foi diretor, encenador e fundador da extinta Agremiação Goiana de Teatro (AGT) e do Teatro Inacabado, da Fundação Otavinho Arantes.

Floracy Alves Pinheiro (Cici Pinheiro) – Nasceu em Orizona, em 1929. Morreu em Goiânia, no dia 9 de abril de 2002. Foi atriz, diretora e escritora e também dirigiu o Instituto Goiano de Teatro, da Fundação Cultural de Goiás (atual Agência Goiana de Cultura).

João Bennio Baptista (João Bennio) – Nasceu em Presidente Soares, Minas Gerais, em 1927. Veio para Goiânia em 1955, onde morreu em 18 de junho de 1984. Foi ator e diretor de teatro e cinema, fundador do extinto Teatro de Emergência e diretor do Teatro Goiânia.